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Eduardo Oliveira e William Santos

Crônicas de um Doido Feliz


Da esquina, sob o cálido sol de todo dia, ele sente o bafo dos carros e observa as pessoas que transitam em mão dupla, quase sem parar. Os olhos por trás dos óculos escuros estão sempre em busca dos detalhes miúdos que compõem o cruzamento das avenidas da Universidade e 13 de Maio. Há três meses, Paulo Roberto de Castro Almeida, o Seu Paulo, (re)descobre a atmosfera do Benfica de uma maneira só dele. Sentado sobre a pedra marcada pelo próprio traço, vive sem pressa.

De longe, o homem que carrega Che no peito parece calado, sisudo. As mãos firmes seguram as placas feitas de papelão e canetas multicor. Cada frase quer mostrar o que ele sente e convidar quem passa a um encontro não marcado, um diálogo imprevisto. No chão, os livros à venda simbolizam a entrada no universo dele – repleto de referências políticas e ideológicas. Seu Paulo só vende os exemplares que o agradam. E depois de lê-los, claro.

De perto, já nas primeiras palavras trocadas, as mãos falam tanto quanto os fonemas. A cabeça e o coração também. Para Seu Paulo, comunicar é ser livre e aprender com o outro. É ser jovem aos 54 anos. É ir e vir na bicicleta caracterizada, colocar as ideias e os devaneios no papel e não ter vergonha de mudar de opinião. O apaixonado pela leitura é também apaixonado por gente. “É importante ter pessoas para conversar, para debater. Isso não tem preço”, diz. O homem de esperança, que acredita na vida, tem muita história pra contar.

LIGA: Seu Paulo, o senhor nasceu aqui mesmo, em Fortaleza?

Seu Paulo: Foi. Nasci em 1959, no dia 5 de abril. Nasci no subúrbio, no Jardim América. Me criei no subúrbio e tive a sorte de ter pais que procurassem que eu estudasse, fizesse ao menos o Ensino Fundamental. Minha mãe era surda, meu pai não. Eu tive a sorte de sempre gostar de ler – não tive um ensino acadêmico, mas meu gosto pela leitura abriu meus horizontes, me fez conhecer um universo diferente. Nós somos universos à parte, cada um de nós, e, a partir dos livros, a gente vai conhecendo a vida, as coisas, e vai tirando as próprias conclusões sobre tudo – captando energias das pessoas e devolvendo em forma de frases.

LIGA: O que o senhor gostava de ler quando criança?

Seu Paulo: Eu via meus irmãos estudar em voz alta – um se formou em Engenharia e o outro em Direito – e gostava disso. Eles me ensinaram a ler. Eu lia os livros deles e ia absorvendo aquela cultura. É como se eu estivesse dentro do mar e tivessem jogado uma boia pra mim. Fiquei muito grato. Assim como Deus é a base de tudo, a educação é a base do cidadão. Comecei a trabalhar e pensei: “agora chegou a hora de retribuir à sociedade aquilo que eu ganhei, fazendo militância política, procurando orientar as pessoas da melhor maneira possível”. Eu acho que o melhor dia do ser humano é o dia em que ele vai votar.

LIGA: Seu Paulo, quando a gente veio aqui convidá-lo para essa conversa, o senhor comentou que não chegou a terminar os estudos, não fez faculdade. Então, a que o senhor deve a construção do pensamento crítico que considera ter hoje?

Seu Paulo: Eu adquiri com a leitura. Eu fui lendo, observando, tirando minhas conclusões, procurando humildemente me guiar pela razão. Eu não tenho partido político, não tenho religião, procuro me guiar pela razão. Você se guiando pela razão, pelo bom senso, não tem como errar. E se você errar, você bate na trave. Se você assumir uma religião, ou se assumir um partido político, você se limita. Você tem que ser livre, totalmente livre, porque quando surgir uma ideia nova, você aprende com ela e a aceita. O universo evolui e alguns conceitos vão ficando pra trás e vão surgindo novos. Se você assumir uma postura, se você se rotular, você se limita.

LIGA: O senhor já falou que não é filiado a nenhum partido, é apartidário, mas de onde veio o interesse por essas bandeiras que defende? Quando o senhor começou a militar?

Seu Paulo: Eu comecei a militar antes de votar. Antes de votar, eu já tinha consciência do que me rodeava. Já tinha consciência de que este dia é super importante, porque aquela pessoa que eu eleger vai controlar minha vida – aquela pessoa vai ter um poder de vida e morte sobre mim. O brasileiro não tem consciência disso. O brasileiro, em dia de eleição, parece que vai pra uma festa, mas não: “você vai votar, você vai eleger uma pessoa que vai ter um poder de vida e morte sobre você”. Não todos, uns 40% têm consciência, mas a maior parte não tem. E como o voto é igual, universal, o voto de uma pessoa que sabe o porquê do voto tem o mesmo peso do de uma pessoa que não sabe.

LIGA: O senhor mesmo falou que o brasileiro não tem consciência da importância do voto. O senhor lembra, então, do primeiro dia, da primeira vez que votou? O que isso significou pro senhor como brasileiro?

Seu Paulo: Pra mim, significou tudo. Inclusive, dificilmente eu elejo meus candidatos. Porque eu procuro conhecer quem é, o que ele fez, o que se propõe a fazer. Na época em que comecei a votar, existiam partidos políticos, mas hoje não existem mais. Hoje só existem projetos de poder.

LIGA: Agora nós vamos encaminhar a nossa conversa para uma segunda parte, porque a gente faz parte de uma agência que enxerga a comunicação como um direito humano, ou seja, todo mundo tem o direito de se comunicar. E quando a gente vê o senhor aqui, com suas placas, a gente percebe que o senhor, na verdade, está tentando se comunicar. De onde vem, então, a vontade de fazer comunicação através dessas placas, dessas mensagens?

Seu Paulo: Rapaz, tudo vem da leitura. Você lê e enriquece o seu “eu”, vai aprendendo cada vez mais e vai querendo mostrar aquilo que você sente para as pessoas. Por exemplo, eu tenho uma ideia, aí se eu achar que aquilo é certo – eu sei que cada um tem sua verdade -, eu procuro mostrar para os outros. (Eu digo): “Isso aqui é o que eu acho. Não é a verdade, porque ela é inalcançável, mas o que você acha? Venha debater comigo. Eu quero aprender com você.” É assim.

LIGA: E como foi que começou essa história de escrever nas placas? O senhor estava contando (no dia em que combinamos a entrevista) que começou, na verdade, escrevendo num comércio que tinha. Como foi essa história?

Seu Paulo: Em 2002, eu comecei a colocar nas paredes do meu comércio as minhas ideias. Aí as pessoas viam, liam e gostavam.

LIGA: Como o senhor escrevia nas paredes?

Seu Paulo: Eu colocava no papel uma frase e um rapaz que era letrista fazia pra mim. Eu coloquei umas cem frases na parede. Até que entrei em sociedade com o meu irmão, que disse que não era interessante pro comércio ter aquelas coisas escritas na parede, então eu tirei. Em pouco tempo, a gente brigou por incompatibilidade de ideias e eu coloquei de novo, tá tudo lá.

LIGA: E essas frases falavam do quê?

Seu Paulo: De tudo. Política, religião… Eu cheguei à conclusão de que não sei de nada, não. Eu tenho 54 anos. Quando eu nasci, o Universo já tinha bilhões de anos, como é que eu vou saber de tudo? Nós temos apenas uma noção das coisas, ninguém pode dizer nada com certeza. As religiões, por exemplo, pra mim, não deviam existir. Bastava todo mundo usar só uma frase: “amar a Deus sobre todas as coisas e ao teu próximo como a ti mesmo”.

LIGA: Desde quando o senhor vem pra cá (para o cruzamento da Avenida 13 de Maio com Avenida da Universidade)?

Seu Paulo: Eu tinha um comércio – mercearia e bar – que não deu certo, aí mudei de ramo e montei um tudo-usado. Só que como eu já tinha passado 20 anos preso a esse comércio, eu pensei: “não vou ficar mais aqui dentro”. Resolvi sair, fazer militância política, colocar minhas frases, me libertei. Eu venho pra cá porque acho legal e tem muita gente inteligente. Pensei que fosse melhor mostrar as placas aqui, porque as pessoas entendem do que eu estou falando. Lá onde eu moro, no Jardim América, eu só arranjei pedradas, críticas, a maioria das pessoas virava a cara pra mim. Mas eu ainda deixo frases por lá. Todo dia eu penso em umas dez frases, escolho a melhor e deixo lá como “a frase do dia”, numa placa de madeira. Eu venho pra cá faz uns três meses, mas a venda de livros eu inventei porque muita gente dizia: “ei, cara, vai procurar o que fazer.” Não dá tempo de dizer que meu comércio é lá. Aí eu comecei a vender livros (aqui) pra me justificar.

LIGA: E como é a reação das pessoas (ao passarem pelo senhor)?

Seu Paulo: Alguns paravam o carro e diziam: “vai trabalhar!”, porque quando você faz placas com frases que vão de encontro ao que as pessoas acham, elas ficam com raiva, querem te ofender.

LIGA: O senhor se incomoda quando alguém não concorda com o que está escrito nas placas?

Seu Paulo: Não. Eu acho legal. Uma estudante da UFC, por exemplo, mudou uma ideia minha. Fiquei maravilhado. Ela me chamou pra conversar e eu fui. Eu explanei meu pensamento e ela falou: “não, Seu Paulo, eu penso assim…”. Era sobre os Black Blocs. Eu disse que ninguém mudava nada com violência, aí ela disse que cada um tinha a sua verdade. “Eles são violentos, sim, mas já sofreram tanta violência do Sistema que agora eles estão retribuindo, mas a brutalidade deles não é nada comparada à do capitalismo.” Mesmo eu tendo ideia formada, ela me deixou com vários questionamentos.

LIGA: O senhor falou que muita gente passa e não concorda, ofende. Tem gente, também, que passa direto, mas, de um modo geral, existem pessoas que param pra conversar com o senhor?

Seu Paulo: Ainda agora uma moça parou pra fazer um trabalho de Sociologia, tirou foto e conversou comigo uns vinte minutos. “Me sinto orgulhoso em poder cooperar com o seu estudo”, eu disse. 90% das pessoas que passam por aqui acham legal, engraçado, concordam – ou, se não concordam, me tratam com respeito, que é o principal, pra mim. Você tem o direito de não concordar comigo, mas tem o dever de me respeitar.

LIGA: A gente já falou de como as pessoas de fora enxergam o que o senhor faz. Mas como sua família recebeu isso?

Seu Paulo: Os meus parentes que são esclarecidos, que têm uma noção das coisas, gostam muito de mim. Me incentivam: “vai tio, vai!”, acham legal. Agora os meu parentes que não têm educação, que não estudaram nada, me chamam de doido: “Olha o doido, isso é um doido, maluco”. Na cabeça deles eu sou um doido, caricato. Tanta palavra lá que eles dizem comigo. Eu sei que é um direito deles pensar assim: “você é um besta, rapaz, só se preocupa com besteira. Negócio de política. Política é pra quem não tem o que fazer, rapaz! Vai procurar outra coisa, vai procurar ganhar o que tu comer!”. E eu digo: “não”.

LIGA: Seu Paulo, agora a gente quer saber o que o senhor faz até chegar aqui…

Seu Paulo: (aproximando-se das placas e interrompendo) Olha, isso aí foi tudo eu que fiz…

LIGA: Como é a sua rotina até chegar aqui?

Seu Paulo: A minha rotina é a seguinte: quando eu me levanto de manhã, eu faço o café logo, porque eu gosto de tomar café cedo. Eu me levanto e já deixo tudo pronto pra minha mulher. Ela se levanta, toma banho, toma café e vai trabalhar. Antes, eu ficava na mercearia. Quando ela acabou, eu ficava no tudo-usado. No tudo-usado eu abusei (e disse): “eu não quero mais ficar preso”, aí eu venho pra cá. Então minha mulher vai pra Secretaria (de Segurança Pública, onde trabalha) e eu venho pra cá.

LIGA: Já de manhã?

Seu Paulo: Eu venho de manhã pra cá. Se eu tiver alguma coisa de manhã pra fazer eu não venho, eu só venho se não tiver nada pra fazer. Vou resolver um problema da família, vou resolver alguma coisa… Se a minha mulher diz: “meu filho, vá resolver isso aqui pra mim”, eu vou, não tem problema. Quando um sobrinho meu pede um favor eu vou fazer, aí eu não venho aqui. Mas, se eu tiver um tempo livre, venho pra cá. De segunda a sexta eu venho. eu saio de manhã, venho pra cá e fico aqui. Aí eu trago tudo aí (na bolsa que está no chão): trago café, almoço, tá tudo aí (apontando para os pacotes que ficam próximos à bicicleta).

LIGA: E o senhor falou que pensa em umas dez frases por dia e escolhe a melhor. Essa é a que o senhor traz pra cá todo dia?

Seu Paulo: Trago pra cá. Eu penso em umas cinco, seis. Hoje eu tava de manhã fazendo um bocado de frases no caderno, fiz umas dez frases, aí botei essa daqui (mostrando a placa).

LIGA: Continuando a falar da sua rotina, o senhor vem e volta de biclicleta?

Seu Paulo: Venho e volto de bicicleta. Eu tenho um carrinho. Eu e minha esposa compramos um Celta de quatro portas, mas pra onde eu vou eu vou de bicicleta, porque aqui eu boto em cima da calçada, eu entro numa loja, eu faço tudo.

LIGA: Seu Paulo, o senhor assina como “Doido Feliz”, não é isso? Quando foi que surgiu essa assinatura e o que ela significa?

Seu Paulo: “Doido Feliz” é porque as pessoas que não concordam comigo passaram a me chamar de doido. Aí eu assumi o nome e coloquei “Doido Feliz”, como uma forma de fazer hora com a cara delas. Elas acham que eu sou doido. Tudo bem, eu respeito, tanto que botei “Doido Feliz”, o pseudônimo. Porque eu também não posso botar o meu nome, Paulo Roberto de Castro Almeida, porque quando você mostra a ideia que você tem, você arranja muita inimizade, muito inimigo. O cara fica com ódio de você, porque você não concorda com ele, às vezes quer até lhe matar, lhe prejudicar. Aí não, eu botei o pseudônimo. É uma espécie de defesa. Coloquei, todo mundo achou engraçado e eu deixei.

LIGA: E o senhor traz esses livros pra vender (há vários livros expostos no chão). Esses aqui, todos o senhor já leu?

Seu Paulo: Se eu pudesse doar todos esses livros, eu doava. Mas veja bem, eu leio até bula de remédio, eu leio vorazmente. Gosto de leitura, é comigo mesmo, é a maior diversão que eu tenho, a leitura.

LIGA: O senhor tem autores preferidos?

Seu Paulo: – Rapaz, eu tenho vários autores. Daqui do Brasil, eu tenho Machado de Assis, José de Alencar, José Lins do Rêgo, tá entendendo? Eu tenho português, o Eça de Queiroz, é muita gente boa. Tem o Carlos Drummond…

LIGA: Seu Paulo, e o senhor traz pra vender os livros que já leu? Como é que é?

Seu Paulo: É porque é o seguinte: eu compro os livros, e livro é caro. Infelizmente, a cultura no Brasil é essa. Tá aí uma coisa que era pra ser subsidiada pelo Estado – a cultura -, mas não é. Você vai comprar um livro por 45, 50 reais. Aí o que eu faço: leio e boto pra vender. Vendo e compro de novo. Vou lendo e vendendo, entendeu? Isso aqui tudo eu li (apontando para os livros). Depois eu boto pra vender. Agora eu só boto pra vender o que eu gosto de ler.

LIGA: Daqui tem algum preferido?

Seu Paulo: Rapaz, daqui… tá aqui (entrega o Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre). Todo mundo tem que ler esse livro aqui, todo mundo.

LIGA: Seu Paulo, o senhor falou que gosta de escrever essas frases e trazer as placas pra cá pra mostrar o que sente. Qual é o seu principal objetivo ao mostrar o que sente para as outras pessoas?

Seu Paulo: Rapaz, o objetivo principal é ajudar as pessoas. É de você ler, procurar se informar, educar, aprender e transmitir para aquela pessoa o que você aprendeu, tá entendendo? O que você acha que tá certo. E se aquela pessoa se der bem com aquilo, isso pra mim é tudo. Quando uma pessoa passa por aqui, lê uma frase dessas minhas, ri e faz assim (acena) pra mim, tem preço isso aí? Não tem. Você escrever uma frase e a pessoa vir (perguntar): “como é o nome do senhor?”. “Meu nome é tal”. “Muito prazer em conhecê-lo, eu achei legal o seu jeito de ser, o que o senhor escreve. Parabéns”. Quer dizer, isso não tem preço, não tem dinheiro que pague. Se eu morresse agora, eu morreria feliz. Nos três meses em que tô aqui eu já fiquei mais feliz do que nos 50 anos que vivi pra trás. Eu tenho 54 anos. Os 53 anos e 9 meses que eu vivi pra trás não valem nada. Tá valendo esses três últimos meses que eu tô vivendo aqui. As pessoas virem falar comigo, eu conhecer novas pessoas, eu conhecer vocês, alunos, vários professores já vieram falar comigo, me parabenizar, trocar ideias comigo. É por isso que eu digo: quando o ser humano se educar, que eu não sei quando é que vai ser, e entender que o dinheiro é só uma ferramenta, que o que vale são ideias, o que vale é você ter boas amizades, você procurar ajudar as outras pessoas, as pessoas te elogiarem e você elogiar as pessoas, todo mundo ser bacana um com o outro, quando as pessoas começarem a entender que isso é que é importante é que nós vamos ser socialistas. Enquanto isso não acontecer, nós vamos ser socialistas só da boca pra fora, só da boca pra fora.

LIGA: Então é isso que o senhor espera pro futuro?

Seu Paulo: É isso que eu espero, que um dia o mundo seja realmente socialista, que todo mundo seja amigo, que todo mundo seja irmão, que todo mundo respeite ao próximo como a si mesmo, tá entendendo? É isso que eu espero.

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