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Entre batuques e loas

  • Bárbara Barroso e Luana Barros
  • 9 de mar. de 2014
  • 9 min de leitura

Três décadas de carreira refletidas em conhecimento. Assim podemos caracterizar a história de João Wanderley Roberto Militão, ou Pingo de Fortaleza – nome pelo qual o músico cearense é conhecido no universo artístico –, homem preenchido por experiências peculiares e histórias curiosas que se transformaram em fases de uma vida construída pelos mais diversos pontos de Fortaleza. De grande carga intelectual, ideológica, carisma e fortes traços culturais que correm nas veias desde a infância, Pingo é, há tempos, uma referência artística na Terra da Luz.

Como bom cantor e compositor, aposta no poder que uma intensa influência rítmica pode exercer na formação dos indivíduos nesta cidade. Durante o período festivo no qual nos encontramos, Pingo comemora mais uma época de sua trajetória fazendo e trazendo o carnaval até ruas, à verdadeira atmosfera popular, e concretizando o contato da sociedade com as realizações artístico-culturais existentes. Com preferências voltadas para o ritmo do Maracatu, com o auxílio do projeto por ele fundado, Maracatu Solar, o músico agrega valores históricos desta expressão cultural à cidade e instiga o nascimento de novos adeptos a esta prática no Ceará.

Para Pingo, a arte, antes de qualquer coisa, “tem que ser fonte de alívio, prazer e amor em quem convive com ela”. O cantor não contrariou sua definição ao exibir-nos, durante a entrevista, largos sorrisos enquanto comentava sobre a agenda de intervenções do Maracatu Solar, marcadas para ocorrer durante o período carnavalesco, sem espaço para novos eventos. Orgulhoso ao ver suas expectativas para com o projeto se tornando reais, Pingo acompanha de perto a fabricação das fantasias e dos instrumentos que serão usados para colorir e alegrar as ruas de Fortaleza nesta temporada festiva.

Engajado numa busca contínua por motivações e estímulos que sirvam de razão para disseminar a cultura na sociedade, mesmo em meio às dificuldades de produção atuais, ele nunca deixa para trás os aspectos adquiridos em sua terra natal e segue, assim, mostrando ao povo a capacidade da arte de ser uma dádiva inovadora e irrestrita.

Liga: Você possui uma carreira musical bastante densa, com duração de pouco mais de três décadas. De onde nasceu o interesse pela música e pelas composições? Quais foram as maiores motivações durante o seu crescimento na universo da música?

Pingo: Essas coisas você não define assim. Não existe particularmente um dia em que você diz: “Ah, eu vou entrar. Eu vou ser músico, eu vou ser compositor, eu vou fazer minha vida nesse universo artístico-cultural”. As coisas vão acontecendo, múltiplos fatores na sua vida vão acontecendo e, de alguma forma, aquela trajetória vai se consolidando. Desde a minha infância, minha adolescência com os amigos, aprendendo violão no bairro do José Walter, posteriormente na Escola Técnica, vendo o conjunto da escola tocar e já enxergando na universidade uma dinâmica cultural de grupos, acho que isso me estimulou de alguma forma. E quando eu vi, já estava fazendo música para teatro na Escola Técnica, já estava fazendo algumas composições, tocando em alguns shows ligados à universidade, principalmente ao movimento estudantil, dentro do movimento de reorganização do movimento estudantil, no início da década de 80. Então essa junção de fatores, de alguma forma, quando você se apresenta, quando você sente um retorno das pessoas, uma canção que toca alguma pessoa, um espetáculo onde as pessoas se divertem e ficam contentes com a sua performance. Tudo isso me estimula de alguma forma. Quando você percebe, você já está envolvido com aquilo e não tem mais volta. Você está cada vez mais dentro daquilo. Sempre foi assim comigo. A cada dia mais estou tentando aprender e tentando agregar valores a essa determinação artística que é a minha profissão hoje. É o meu lazer, a minha brincadeira.

Liga: De que maneira Fortaleza se faz presente nas suas composições?

Pingo: A cidade está sempre presente em tudo. A gente que vive em Fortaleza, que opta por viver na cidade, que vive décadas e décadas dentro da mesma cidade, acaba recebendo a cidade dentro de você, nas coisas que você compõe. Nem sempre quando você fala uma letra tem que citar, literalmente, a cidade ou um espaço geográfico. Às vezes eu faço isso em algumas canções, mas eu acho que… Simbolicamente, sabe? A questão é uma relação mais simbólica. A cidade está dentro de você e as manifestações culturais estão dentro de você e elas se revelam quando você cria. Por exemplo, o Maracatu. O Maracatu não é… A gente (Maracatu Solar) ouviu isso com os compositores. A gente via na rua os grupos tocarem. Você nunca imagina que: “Ah, eu vou compor porque eu vi ou porque eu ouvi…” Mas quando você compõe o Maracatu, todo aquele conjunto de influências que você compartilhou, se revelam naquele trabalho de composição que você fez. Não só no Maracatu, mas na outra forma de compor. Então eu acho que tudo isso se traduz na minha obra. (Ela) Tá carregada dessa cidade, às vezes, de forma muito subjetiva e, às vezes, de forma muito explícita.

Liga: Além de músico e compositor, você também escreve. A partir do seu trabalho, surgiram três livros sobre Maracatu e sobre a música cearense. Em 2013, ano em que se completou 40 anos da gravação de diversos importantes discos para a MPB no cenário regional, você lançou o projeto “Pérolas do Centauro”, que fala sobre traços da memória musical construída no Ceará. Como se deu a experiência? Quais os principais pontos de abordagem no trabalho?

Pingo: A primeira coisa é que eu não me considero um escritor. Eu sou um compositor. Eu acho que, na minha essência, eu era um compositor, mesmo. Aí, tive que desenvolver um pouco a minha capacidade instrumental. Depois, tive que desenvolver um pouco a capacidade de interpretação das músicas. Depois, tive que entender um pouco de produção cultural. E, no final, eu acabei escrevendo também um pouco sobre esse universo que eu vivi. Particularmente sobre o Maracatu e agora sobre a música cearense, mais como extensão da linguagem musical que eu pratico. Tento, nesses escritos, passar um pouco das informações que a gente vai coletando nas pesquisas orais, na pesquisa também de convivência e na pesquisa documental. Então, (o projeto) “Pérolas do Centauro” foi um marco, porque foi um trabalho muito extenso, ele é um trabalho denso. Eu tive que contar com quinze pessoas, quinze textos, escrevi dois para o livro. Produzi um documentário também, dirigi um documentário e gravei dois discos. Foi mergulhar numa aventura. Essa coisa de escrever prosa, porque quando eu escrevia as minhas letras, eu sempre trabalhava com a poética, a prosa (é) distinta, então a coisa tem todo um ritmo. Eu não tenho muito medo de fazer as coisas. Eu vou fazendo e vou aprendendo com elas e eu me sinto muito feliz em fazê-las, acho que isso é o pontapé principal da obra de arte. É você fazer em função de uma necessidade, de uma necessidade que você tem de… Até de viver. Então você faz isso. Por uma questão de necessidade básica de viver, de estar presente, então você pode escrever as coisas. Essas linguagens todas, esse processo todo, vem agregando, vêm somando a tudo o que eu faço, principalmente na área musical, que é o foco sempre das minhas atenções.

Liga: A sua relação com o Carnaval de rua começa cedo, mas só em 1999 você sai pela primeira vez com o Maracatu Az de Ouro. O que a rua passou a significar para você a partir do Carnaval?

Pingo: Olha, realmente uma cultura musical diferenciada do teatro e tal, do show pela cidade. A primeira coisa que representou pra mim foi sair desse… Eu acho que eu era um cantor da Concha Acústica até ir para o Az de Ouro. Então, o Az de Ouro quando me convida para fazer as músicas do Carnaval de rua e eu vou ensaiar no Jardim América, eu vou ensaiar na rua. Eu vou cantar para as pessoas da comunidade. E eu começo a cantar outras músicas que eu já tinha feito, além das que eu estava fazendo especificamente para o Az de Ouro. Essa experiência de rua, primeiro o contato com um público que não tinha acessibilidade quanto ao meu trabalho – o que foi muito importante, porque é um processo de repassar isso. Na Domingos Olímpio (é) uma população bem maior, é um polo. Na Domingos Olímpio é uma experiência diferente do palco, você vai cantando. A música não muda, o que muda é o público. Então é uma diferença do palco, onde você canta música de cinco minutos, (depois) outra de sete e o público é o mesmo no espetáculo. Na Domingos Olímpio, a cada dez minutos o público muda e a música é a mesma. Foi uma experiência magnífica. Aprender aquilo ali e passar aquela canção, ver a emoção das pessoas. E cada ano se renovava, as pessoas já esperavam isso. Com o Carnaval e o Az de Ouro, minha relação com a cidade passou a ser mais plural. E aí posteriormente com o (Maracatu) Solar, a coisa se amplia. A gente passa a não ficar mais só na Domingos Olímpio. A gente enxerga e tem a concepção de que o Carnaval passa pela Domingos Olímpio, mas também tem a concepção que o Carnaval de Fortaleza começa no pré. Então, a gente participa efetivamente do pré, com o (bloco) Luxo da Aldeia, (o bloco) a Cachorra Magra e os ensaio abertos aqui mesmo e os vários eventos que a gente faz no Shopping Benfica. E dentro do Carnaval, a gente também desenvolve projetos que pra gente são emblemáticos, porque o Maracatu Solar na Domingos Olímpio tem um viés, que é a exibição. Você tá se exibindo com o grupo todo, as pessoas estão vendo. É uma coisa. A gente acabou criando dois projetos que mostram outro lado do Maracatu. O primeiro que é o Brinca de Maracatu, que é um projeto mais musical, onde o batuque toca as canções e pode ter figural ou não. É pra mostrar a musicalidade do Maracatu. Esse projeto nós fizemos experimentalmente em 2012, fizemos no palco em 2013 e vamos fazer agora esse ano (no) domingo e terça de Carnaval, na praça da Gentilândia, no Benfica. Outro evento importante que a gente faz é o “Tambores Ancestrais na Noite Escura”, (que) é uma coisa mais ritualística, nós acabamos convidando grupos de afoxé, de maracatu e, esse ano, de capoeira também, e nós fazemos um ritual. A gente vai lá, tem um babalorixá para dar a benção e eu faço um poema do Craverinha, que fala sobre “Eu quero ser tambor”, que é exatamente uma referência a ancestralidade do tambor. E a gente faz esse ritual meia noite e depois toca os tambores. Eu acho que essa minha participação no Carnaval mudou minha forma de interagir com a cidade. Eu acho que é um momento intenso. E cada vez mais não só o Carnaval, mas o Maracatu dentro do Carnaval de Fortaleza se consolida mais como uma manifestação referencial.

Liga: E o Maracatu Solar dentro disso? Ele que possui grandes quebras em relação ao dito maracatu tradicional, chegando a ser alvo de críticas. O que motivou a criação do Maracatu Solar e o que representa ele dentro do Carnaval de Fortaleza?

Pingo: O Maracatu Solar foi fruto de uma vontade, de uma necessidade de muitos. Na época do surgimento, minha, do Alan Mendonça, Milton Matos, Nei Mapurunga, Decartes Gadelha. Todos que estavam aqui nesse momento. Como uma necessidade de desaguar nossa capacidade criativa, essa nossa vontade de inventar arte, inventar música. E quando nós discutimos, nós já imaginamos algo em que tivéssemos essa liberdade. A gente queria essa liberdade criativa, que é inerente à arte. Então, não estamos preocupados com julgamento, com avaliação na Domingos Olímpio. A gente tá preocupado em satisfazer essa necessidade criativa, inventiva do grupo. E o grupo todo é assim, não somos só nós, e eu acho que as pessoas que vêm já sabem que o grupo tem essa característica. (O Maracatu Solar) Toca vários ritmos, aqui não tem a obrigatoriedade do negrume, se você quiser pintar você pinta, se não quiser pintar não pinta. É um programa de formação cultural continuada, de troca permanente de informações. Hoje o Maracatu Solar dá uma importante contribuição para o Carnaval porque ele mostra um outro lado. Nós respeitamos os grupos todos, suas estéticas. Mas a gente tem um jeito de ser que eu acho que acrescenta, agrega valor, porque muitos jovens, muita gente que tem uma visão parecida com a nossa vem pra cá. O Solar representa o aspecto lúdico, de brincadeira da manifestação, trabalhando um pouco essa essência dessa manifestação como algo que surgiu de brincar, de se abstrair de uma realidade e passar para um plano de ludicidade, de brincadeira nesse universo às vezes tão cheio de regras, de patrulhamentos ideológicos e de pensamentos. Acho que o nosso papel é esse: mostrar a capacidade da arte de ser livre.

Liga: Voltando um pouco para a tua carreira, muitas das suas composições são críticas. De que forma essa crítica pode voltar para a cidade, para que as pessoas possam ter um olhar diferente a partir das suas músicas?

Pingo: A gente faz música em todos os sentidos. Acho que o papel da música é, inicialmente, lhe gerar um momento de prazer, de deleite, de alegria. Se a letra vai vir contundente ou não, se vai fazer uma crítica e você vai refletir sobre aquilo, é outra questão. É posterior. O primeiro momento é de fazer uma coisa natural, que você já faz, e que as pessoas se sintam bem ao ouvir. Esse ano mesmo, a gente (Maracatu Solar) tá trabalhando o futebol na tradição Nagô, um coisa que não tem nada a ver com o que tá se fazendo, com a Copa (do Mundo de Futebol) e tudo mais, mas não tá entregando o patrimônio do futebol para essa moçada. Uma coisa que não tem nada a ver com as instituições, mas o futebol é do Brasil e nós temos uma letra baseado nisso aí. Estamos brincando com esse universo. A gente trabalha sempre dessa perspectiva. A arte não tem eminentemente esse papel de despertar para questões sociais. Ela pode despertar, mas acho que antes de qualquer coisa ela tem que ser fonte de alívio, prazer e amor em quem convive com ela. Depois ela pode acrescentar valores espirituais, sociais, econômicos, geográficos.

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