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  • Lívia Carvalho e Wellber Teixeira

Vidança: a arte em construção

Conheça a história de Anália Timbó e da Escola que forma crianças e adolescentes para serem artistas

Anália e suas alunas / Foto: Divulgação

A dança, a arte, os sonhos e todo o que envolve e permeia esse maravilhoso universo faz parte da vida de Anália Timbó desde que ela era apenas uma menina de sete anos. Desde criança, a sonhadora tinha apenas uma certeza: queria ser artista. Nascida no interior do Ceará e de família humilde, Anália só teve a oportunidade de poder viver seu sonho já na adolescência, com 17 anos.

Aos sete anos, a bailarina também tinha o sonho de ser freira e, por isso, sua mãe a colocou no convento. Lá, ela lembra com carinho das lembranças: subia nas árvores de castanhola e prestava minuciosamente atenção aos movimentos das nuvens, das árvores, dos pássaros e, a partir dali, criava seus próprios passos coreografados coordenados com o embalo da natureza.

Com 17 anos, já morando na capital, Anália começou a frequentar com uma amiga a Escola do Serviço Social da Indústria (SESI), que disponibiliza aulas e capacitações para os filhos de operários, na época, como aulas de dança, de teatro, de capoeira, etc. Foi ali que viu seu sonho começar a tornar-se realidade, quando abriram as inscrições do teste para participar das aulas. “Eu matriculei meus irmãos mais novos e eu não pude fazer o teste, porque a minha mãe viajou e eu tinha que ficar cuidando das minhas irmãs mais novas, mas meus irmãos passaram”, conta. Mas, algum tempo depois, ela foi convidada por um professor para participar de um grupo de ginástica rítmica sem precisar fazer teste.

Como sempre se destacavam nas apresentações, Anália e seus quatro irmãos bailarinos chamaram a atenção do diretor do SESI da época e presidente do CNI (Confederação Nacional da Indústria), Dr. Thomas Pompeu. Emocionada, Anália relembra com gratidão tudo o que o homem fez pela família dela. “Ele ajudava muita gente. A gente passou a ser bolsista, ele mandava a assistente social nas casas, mobiliou a nossa casa e fez não só com a gente”, relata.

Mas, a menina não queria apenas dançar, queria ensinar para os outros a sua paixão. “Eu sempre fui muito afoita, eu dava aula para as minhas irmãs, para as meninas da rua. O que eu aprendia eu trabalhava com elas, comecei a ser professora, e assim foi”, explica. Por muitas vezes as dificuldades bateram à porta, já que ela não tinha dinheiro para pagar as aulas de uma academia de ballet clássico. “Eu não tive uma formação de nove anos, mas os quatro anos que eu tive me deu todo meu saber e quando eu não tinha dinheiro para pagar, eu ficava no teatro, escutando e fazendo. Então, o que a professora dizia, eu fazia, eu não sabia se estava certo, mas eu reproduzia no meu corpo e passava para as meninas”.

O SESI passou por alguns momentos de crise e de cortes orçamentários, já que dependiam de muito dinheiro para manter as ações e os projetos realizados. Mas, as aulas e capacitações continuaram acontecendo, mesmo com menos recursos e, foi nesse período, que ela foi convidada para passar três meses em teste como professora de ballet clássico. Nesse intervalo, ela montou um espetáculo, que teve bom resultado e aceitação do público e, então, ela foi contratada. “Eu trabalhei por 23 anos, eu atendi 160 crianças, eu dava aula para as 160 crianças. Eu fazia tudo, o SESI era muito bom, mas ele não me dava autonomia”, afirma. Naquela época, o movimento das Diretas Já havia iniciado e ela encontrou na dança e no teatro um meio para mostrar apoio e protestar contra o Governo, no entanto, a rede de instituições não permitia que essas críticas fossem feitas.

Foi então, que veio a ideia de criar um espaço para que ela pudesse trabalhar, inventar e fazer as coisas que gosta, ensinando crianças e jovens do bairro carente em que morava, a Barra do Ceará. “O Vidança vinha numa proposta diferente, ele dançava o clássico, mas ele dançava as nossas dores, o nosso dia-a-dia, as nossas dunas e, como eu vinha do folclore e do teatro, eu tinha uma outra concepção de dança”, explica. Sobre a escolha do nome, a professora ressalta que buscou unir duas paixões: a dança e a vida. Nasceu, então, a Associação Vidança Cia. de Dança do Ceará, em 1981.

Vidança

Observando uma mínima quantidade de movimentos artísticos no bairro em que viveu grande parte de sua vida, Anália Timbó, junto a um grupo de colegas, teve a iniciativa de fundar a companhia de dança. Com o intuito de passar adiante as suas vivências e conhecimentos, o corpo de baile, como Anália e seus companheiros se denominavam, nasce a Associação Vidança que buscava proporcionar experiências artísticas para crianças e adolescentes da Barra do Ceará.

Tendo em vista uma tentativa de ultrapassar as constantes exclusões sofridas pelas crianças e adolescentes das periferias de Fortaleza, o Vidança e os profissionais voluntários se tornaram um porto seguro para esses jovens. Com aulas de danças clássicas, contemporâneas e de diferentes instrumentos de percussão, a escola conseguia agradar diferentes gostos e diferentes públicos. Com isso, mesmo que eles só passassem cerca de três horas na companhia, era o suficiente para eles terem acesso a novas experiências e a poderem ocupar o tempo ocioso.

Com uma metodologia artística diferente dos professores convencionais, Anália sempre utilizava da natureza para inspirar seus movimentos, seja utilizando cipós para demonstrar alguns movimentos, seja dançando na areia. Ela acredita que ter esse tipo de contato com o ambiente torna a dança algo mais natural e intuitivo, além de passar uma noção maior de ocupação do espaço. “O Vidança nasceu disso, dessa vontade de ser, de continuar, de fazer coisas aqui, e da gente ter enquanto artistas cearenses uma identidade. Dessa forma a bailarina tenta durante as aulas passar esses sentimentos para os seus alunos, até para que eles possam perceber a importância do local em que eles para a sua formação. Dar aulas nas dunas e no mangue do Vila Velha são algumas das estratégias que ela utiliza para criar esses laços e para fomentar esse sentimento de ocupação dos espaços.

Vendo o aumento da quantidade de alunos e com o desenvolvimento da escola, Anália percebeu que iria precisar de mais ajuda e de um espaço maior para suprir as necessidades vigentes. Então veio a ideia de trazer os familiares para os muros do Vidança, já que muitos deles estavam desempregados. E assim surgiram os cursos de corte e costura e produção de instrumentos musicais na companhia. Com a doação de tecidos e madeiras, o Vidança começou a produzir seus próprios figurinos e instrumentos de percussão, aumentando o engajamento da comunidade com o projeto e podendo proporcionar novas formas de renda para essas famílias. Além de conseguir novos voluntários, O Vidança conseguiu se mudar para um novo estabelecimento no bairro Vila Velha - vizinho à Barra do Ceará -, onde uma casa alugada é utilizada até hoje como sede da companhia.

A escola funciona, quase totalmente por meio de trabalho de voluntários. No entanto, sempre que possível, a companhia participa de editais, já que, em questão de estrutura, ela ainda necessita de muitos reparos e ajustes. Por ser uma escola antiga, reconhecida e com uma boa quantidade de projetos, torna-se mais fácil ser contemplado com esses editais, mas nem sempre eles chegam na época prevista. “Recursos que deveriam vir no começo do ano só chegam no meio do ano, por exemplo, e eu não posso parar. ​Se eu for parar até o dinheiro chegar eu vou precisar recolher todo mundo e cancelar os espetáculos.”, afirma Anália.

Projetos e ações da escola

O Vidança é composto por uma série de projetos que tentam atender algumas das necessidades da comunidade do Vila Velha e da própria escola. Sendo eles envolvendo a dança ou não, os projetos visam proporcionar novas experiências e incentivar certas atividades. A parte de ofícios da dança conta com vários estilos diversos, como ballet clássico, consciência corporal, criações viso-manuais, capoeira e hip-hop. O “Tambatuque” é o nome do grupo de percussão do Vidança, onde crianças e adolescentes do Vila Velha buscam uma expansão expressiva do processo de formação em arte com uma linguagem que vivencia processos autônomos e a inserção da comunidade no lugar e no ambiente. Aliado à percussão, existe o programa de carpintaria que funciona como um acréscimo ao artesanato e das suas derivações.

Outro grande projeto é a Biblioteca Comunitária, que tinha o intuito de introduzir a prática da leitura como um hábito no Vidança. Assim, foi criada uma biblioteca dentro da escola com livros que narram a história e o folclore brasileiro, sempre envolvendo um diálogo entre literatura e dança, música e cena teatral. Com o sucesso do projeto, foram iniciadas ações que pudessem alcançar, até mesmo, as crianças que não faziam parte da companhia.

Dessa forma, foi criada a “Contação de Histórias” e os “Cortejos nas Calçadas”, onde professores e alunos vão às ruas do Vila Velha fazendo um cortejo com muita música. Depois de um tempo da atividade, todos se reúnem numa roda e algumas histórias são contadas pelas próprias crianças, instigando, além da leitura, a oratória.

O “Vidança Novas Mídias” é um dos projetos sociais que traz âmbitos novos de ação, que trabalha as linguagens da fotografia e do vídeo como mídias ligadas à inclusão digital. Nele, os jovens vão a regiões do bairro, como o mangue, buscando a base para transmitir as sensações e percepções desses meios, por meio dessas mídias. “É importante que os participantes da formação em Dança e suas ramificações artísticas possam se apropriar do funcionamento das diferentes atividades coletivas e de novas mídias, vendo como se relacionam a informação midiática com a prática vivida por nós”, completa Anália.

Espetáculos

Com mais de 30 anos de existência, o Vidança já apresentou vários espetáculos, como “Mangue Memórias da Pele”, “Mulher Rendeira”, “Terreiros de sol e Lua” e o mais recente “Contos e Corpos Andarilhos”, que são criados a partir de um intenso estudo artístico, com cursos de dança, de teatro e das mais diversas linguagens que permeiam o mundo das artes.

Foto: Divulgação

Em preparação para apresentar os novos espetáculos, a rotina de todos aqueles que participam e integram a Escola muda. São ensaios em cima de ensaios, figurinos para serem finalizadas e instrumentos sendo reparados e afinados. “É muito mágico o que a gente vive aqui. Quando a gente pensa que está no caos, a cortina se abre e tudo transforma, porque tudo aqui tem muita verdade, tem muito desejo, tem muito sonho, muito esforço de todo mundo e todo mundo contribui. Aqui ninguém faz nada só”, afirma Anália.

O encerramento da temporada de apresentação de “Contos e Corpos Andarilhos” aconteceu no Cineteatro São Luiz, no dia 30 de novembro. O novo espetáculo teve como inspiração as histórias que as crianças carregam e sobre a ocupação do bairro Vila Velha. “É como esse corpo se movimenta, é como essa dança foi construída aqui e como as pessoas vieram pra cá, como elas chegaram aqui, mas numa visão atual, onde tem o corre corre, tem o funk, mas tem o clássico também. São retratos da nossa história”, explica a presidente da associação.

Personagens da vida real

No Vidança há 13 anos, Alexandre Liarth entrou no projeto com 18 anos por influência dos amigos. No início, a timidez e a vergonha foram maiores e o fizeram hesitar participar ou não da Escola.Sentimentos superados, Alexandre conheceu a música e se apaixonou, ele viu a oportunidade para sua vida e agarrou. Hoje, com 31 anos, o rapaz se tornou carpinteiro e professor de percussão e é com brilho nos olhos que ele fala sobre a paixão que tem pelo projeto. “É muito importante para mim, aqui eu fiz muitas amizades e estou aprendendo muita coisa, estou dando aula em outros projetos e tendo visibilidade, as pessoas vêm me procurar para eu dar aula em outros lugares”, afirma.

Já Carol Santos, estudante de Educação Física e professora de ballet na Escola, lá chegou com apenas nove anos e com uma vontade imensa de aprender. “Eu disse para a minha mãe que queria entrar e todo dia eu ia com a maior dedicação. Aí o tempo foi passando, fui participando dos espetáculos, viajei, tive o privilégio de conhecer vários lugares, por causa do projeto. Aí eu comecei a me dedicar cada vez mais e a Anália me chamou para estagiar, e agora eu que estou dando aula para as crianças”, conta.

A jovem de 21 anos aprendeu com o Vidança a se dedicar e ter motivação, começou a faculdade e já no próximo ano Carol se tornará graduada em Educação Física, um sonho que anos atrás parecia distante. O plano? Seguir a carreira de bailarina e professora, já que, para ela, poder passar o conhecimento que ela aprendeu na vida e dar oportunidade para outras crianças é “magnífico” como ela mesma fala.

A pequena Iasmim Braga de nove anos está há três na Companhia e entrou após pedidos insistentes para a mãe. “Eu sempre gostei de dançar, eu ficava em casa sem fazer nada, aí eu ficava inventando alguns passos. Uma amiga falava para eu ir, aí eu falei para minha mãe e ela me trouxe”. Lá, ela tem aulas de ballet, hip hop, capoeira, mas a sua preferida é a de hip hop. A menina quer ser professora de dança. Com o Vidança, além de aprender sobre o universo artístico, ela descobriu uma motivação para os estudos com a Biblioteca Comunitária. “Quando eu entrei aqui eu estava no segundo ano e no primeiro ano minhas notas eram mais ou menos, aí peguei os livros, li e isso me motivou mais, porque como eu achava os livros daqui super legais, eu pensei: por que os livros do colégio não são também? Aí eu comecei a estudar”, revela.

As histórias se cruzam e se assemelham, mas o Vidança é isso, é família. Criar oportunidades e poder mostrar um novo mundo para essas crianças e adolescentes de periferia, que muitas das vezes são marginalizados e criminalizados, é a maior missão e o maior objetivo. A arte cura, fortalece, motiva e estrutura.

SERVIÇO

A Escola Vidança desenvolve, há trinta e seis anos, um trabalho voluntário ministrando aulas de ballet clássico, danças dramáticas, laboratório de criação coreográfica, dança criativa, alongamento, consciência corporal, criações viso-manuais, criações literárias, capoeira, hip-hop, percussão, carpintaria, atendendo a crianças e adolescentes da comunidade. Não há um processo de seleção para participar da escola e as aulas são totalmente gratuitas. A maioria das aulas ocorrem no período da tarde de 14:00 às 17:00, como capoeira e ballet iniciante.

Local​: Avenida L, no 400, no bairro Vila Velha em Fortaleza. Horário de Funcionamento:​ segunda à sexta (08h às 20h) Contatos: 85 32627599 Site: http://www.vidanca.org/ Email: vidanca@vidanca.org

 

A reportagem "Vidança" foi produzida por Lívia Carvalho e Wellber Teixeira para a cadeira de Impresso I do 4º semestre do Curso de Jornalismo da UFC.

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