Mulheres indígenas são como rios, crescem quando se unem
- Natali Carvalho
- 6 de set. de 2019
- 6 min de leitura
O movimento de articulação das mulheres indígenas ganha força no Ceará, chamando atenção para questões de gênero e luta de seus povos

Grupo de mulheres indígenas em uma manifestação (Fonte: Izabelle Louise)
“‘Você não tem direito de falar nada, fique calada!’ Eu chorei, mas engoli, eu olhei pra ele e disse: ‘se você não quiser, eu não participo de nada, porque não represento nada’”, conta Aurea Maria, líder do movimento de mulheres do povo Anacé e secretária da Articulação de Mulheres Indígenas do Ceará (Amice). Há 519 anos, os povos indígenas resistem, mas se essa luta tinha um rosto, infelizmente não era de uma mulher — até então.
O peso das palavras de Aurea foi observado nas outras cinco representantes presentes na reunião da Amice, no encontro mensal do grupo, em maio de 2019. A organização, criada ainda em 2007, busca fortalecer a luta unificada das mulheres indígenas, assegurando seus direitos, promovendo o empoderamento e a valorização dos saberes tradicionais de seus povos.
QUESTÃO INDÍGENA
Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), existem, atualmente, 1.296 terras indígenas no Brasil. Esse número inclui as terras já demarcadas (401), terras em alguma das etapas do procedimento demarcatório (306), terras que se enquadram em outras categorias que não a de terra tradicional (65) ou, ainda, terras sem nenhuma providência do Estado para dar início a sua demarcação (530).
A Constituição de 1988 estabeleceu que as demarcações dos territórios indígenas acontecessem em até cinco anos, o que não ocorreu. Com o atual governo, não se tem esperanças que isso se realize. O presidente Jair Bolsonaro assinou uma medida provisória que delega ao Ministério da Agricultura, chefiado por Tereza Cristina da Costa (DEM), até então líder da bancada do agronegócio na Câmara, a tarefa de identificar e demarcar terras indígenas no País. Essa era uma das principais atribuições da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Traída. Essa foi a palavra que Maria Nazaré, representante do povo Pitaguary, usou ao tomar conhecimento da medida provisória. Com tristeza, relata que seu povo “está num trabalho de resistência”. Bolsonaro afirmou que não fará nenhuma demarcação de terras indígenas, alegando irregularidades nas demarcações, além de fazer críticas acerca do tamanho do território indígena ocupado atualmente.
Aurea comenta que a luta dos povos indígenas não diz respeito ao lucro. “O que nós estávamos fazendo era lutando pelos nossos direitos, lutando pela nossa mãe terra, lutando pela nossa natureza, porque cada árvore que é cortada de uma área preservada por nós, é um sangue indígena derramado”.
LUTA DIÁRIA
Juliana Jenipapo-Kanindé: cacique, mulher, mãe, filha de Cacique Pequena, atrevida. Esse foi o termo usado diversas vezes pela líder para se autodefinir. Nascida e criada na aldeia, aprendeu a ler muito cedo, o que a trilhou para os caminhos da liderança do seu povo. “Minha mãe me levava para participar das assembleias e seminários, e ela sempre dizia que era porque como ela não sabia ler ou escrever, ela precisava de alguém que dominasse a leitura, para escrever e depois repassar para o povo”, conta.
“Nascer mulher índia e pobre é mais desafiador
ainda, mas eu sempre me pus de cabeça erguida”
O termo “atrevida” que Juliana usa pode ser compreendido como corajosa. Ela afirma que graças a esse atrevimento conseguiu contornar a discriminação e o desrespeito que já encontrou pelo seu caminho por estar em uma posição de liderança; comentários sobre não ter tempo pra sua família, por ser bonita demais para estar em reuniões, por estar sempre viajando são rotineiros, mas a cacique enfatiza que é seu dever dar continuidade à luta de sua mãe e líder, para que as futuras gerações possam ter o mínimo, assim como sua geração teve.
A aldeia Jenipapo-Kanindé é a única, segundo Juliana, que tem um cacicado dividido entre três mulheres. As mulheres a frente do povo carregam o dever de manter a aldeia preservada, é a cacique que acredita em um futuro mais feliz para seu povo. “Tenho muita esperança que um dia os povos indígenas possam ser cadeira primordial na vida dos presidentes da República, embora que não seja esse, mas que seja os próximos que virão”.

Atual gestão da AMICE
ALIANÇA ENTRE MULHERES INDÍGENAS
Segundo o Censo da População Indígena (2010), vivem hoje, no Brasil, aproximadamente 448 mil mulheres indígenas. A vice-coordenadora da Amice, Marciane Tapeba comenta que foi desacreditada por ser mulher. “Me veem apenas como uma indiazinha bonitinha e não meus ideais”, e acrescenta, “lutar para que esses direitos sejam valorizados é uma das minhas motivações, perceber que outras mulheres já se foram e construíram e deixaram um legado de luta e resistência”.
Não importando em que ambiente as mulheres se encontram, o machismo e a violência permeiam as realidades femininas. Sabendo disso, a organização de mulheres indígenas se fortalece, criando uma rede de sororidade.
A cacique Juliana Jenipapo-Kanindé, coordenadora da Amice, afirma que o principal trabalho que a articulação tenta desenvolver é fazer com que as mulheres ocupem os espaços que os homens já ocupam. “Tem espaço para todo mundo, e essas mulheres sempre estiveram na luta, só que em outro cenário, de uma outra perspectiva; quando um homem sai pra luta, representação, as mulheres sempre ficam segurando a barra de frente a qualquer momento, é da casa, da família, da comunidade, essas mulheres sempre tiveram esse lugar, só que não queremos que elas estejam apenas neles”.
A importância dessa aliança de apoio é evidenciada por Maria Jacirene, representante Potyguara, que foi vítima de violência doméstica. “Eu lidei sozinha. Hoje eu sei que o que passei não é bom, e procuro como mulher e como parte da Amice fortalecer mulheres que estão passando por isso”. Ela afirma, ainda, que atualmente tem consciência de que não merecia nem deveria ter passado por essa situação, enfatizando que a questão da proteção da mulher indígena precisa melhorar. “Temos poucos casos de violência por ser interiorzinho, mas isso não significa que não tenha, tem sim! Tem as que sabemos e as que não sabemos, porque nem todo mundo tem coragem de falar que está passando por aquilo”, destaca.
“Como ela vai voltar pra sua casa sendo que toda a
sua família e a do seu companheiro vivem juntos?”
A Lei Maria da Penha é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. No entanto, as mulheres indígenas têm ainda mais dificuldade para denunciar casos desse tipo, já que as comunidades onde vivem são formadas por famílias. “Todo mundo descende de uma pessoa que é meu avô, então todo mundo mora próximo, são primos, tios, estão quando uma mulher passa por uma situação de violência é muito mais complicado denunciar, como ela vai voltar pra sua casa sendo que toda a sua família e a do seu companheiro vivem juntos?”, afirma Marciane.
Visando isso, a Amice pensou numa rede de proteção e apoio para que essas mulheres pudessem contar uma com as outras. Maria Jacirene sintetiza a sua relação com essa aliança: “venho me fortalecer, para fortalecer outras mulheres.”
SEGUIR RESISTINDO
A luta das mulheres indígenas no Ceará ultrapassa fronteiras estaduais. Foi no Acampamento Terra Livre (ATL) — principal e maior assembléia dos povos originários do Brasil, que contou com a participação de mais de 4 mil lideranças de povos e organizações indígenas de todas as regiões do País — que a Amice recebeu destaque e elogios. “Nós, mulheres do Ceará, nos destacamos, levamos faixas, cartazes, fizemos uma fala lá, representamos nossa organização”, afirma Marciane Tapeba, vice-coordenadora.
No acampamento, as mulheres indígenas de todo o País decidiram sair pela primeira vez em marcha para chamar atenção, não apenas para as discussões de territórios, mas também de gênero. Elas se juntaram à Marcha das Margaridas, manifestação anual que ocorre todo mês de agosto em Brasília, liderada por trabalhadoras rurais, sendo a maior ação latino-americana protagonizada pelas mulheres do campo, das florestas e das águas. As margaridas, como são chamadas afetivamente, saem em marcha pela democracia, soberania popular, pelo direito à terra, água e agroecologia e pelo direito das mulheres.
Marciane confirmou a participação da Amice na I Marcha de Mulheres Indígenas, evidenciando a importância desse acontecimento. “A gente acredita que é muito importante pelo fato de fortalecer as pautas das mulheres, mas também fortalecer o movimento indígena como um todo”, explica.
A primeira marcha de mulheres indígenas, que teve como tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”, contou com uma estimativa de 3000 mulheres indígenas participando. O Ceará contou com uma delegação de 50 mulheres dos diferentes povos do estado. Segundo Rafaela Anacé, “a marcha foi de grande aprendizado, pois houve uma grande troca de experiências, tanto física quanto espiritual, e serviu para mostrar tanto pro brasil quanto pro mundo que há sim povos indígenas e há sim mulheres indígenas com garra, força e determinação. Dispostas a lutar por seus direitos, pela fauna e flora”.

Rafaela, à esquerda, e Aurea Anacé na I Marcha de Mulheres Indígenas