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Ameaça invisível: o impacto da pandemia na saúde mental dos estudantes

  • Clara Gantois
  • 30 de set. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 27 de jun. de 2021

Para a psicóloga Ticiana Santiago, o isolamento rompeu redes de trocas presenciais sem que estivéssemos preparados para a comunicação virtual; entre janeiro e julho de 2020, 306 pessoas cometeram suicídio no Ceará

Ilustração: Raquel Lima

Durante a pandemia do novo coronavírus, a contaminação por Covid-19 não é a única ameaça à vida das pessoas. Em um período tão atípico e conturbado, é preciso atentar para a saúde mental dos indivíduos, que acaba comprometida.

A Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou recentemente um resumo de políticas sobre a Covid-19 e a saúde mental, com dados de pesquisas realizadas em países do mundo inteiro. A publicação aponta que os índices de depressão, ansiedade e doenças psicossomáticas dispararam e que profissionais de saúde que atuam no combate ao coronavírus, mulheres, crianças, adolescentes e idosos são os mais vulneráveis aos impactos da pandemia na saúde mental.

Quando não tratado, o sofrimento psíquico por tempo prolongado pode levar ao suicídio. Segundo dados do IntegraSUS, plataforma da Secretaria de Saúde (SESA), entre janeiro e julho de 2020, 306 pessoas cometeram suícidio no estado do Ceará. Dados divulgados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) apontam que a taxa de suicídio entre a população cearense foi mais elevada em março (44), abril (49) e maio (50), períodos do início da pandemia e de maior incidência de casos de Covid-19.

Segundo a psicóloga e doutora em educação Ticiana Santiago, o isolamento social foi a primeira adversidade com a qual as pessoas tiveram que lidar na pandemia. A privação do contato pessoal, do vínculo e das trocas cotidianas abalou a estabilidade socioemocional da população. “O primeiro fator foi esse isolamento, eu não contar com essa rede presencial, física, e essas trocas; e eu não ter de forma justa, democrática e equilibrada instrução, preparação ou acesso a esses meios de comunicação, de forma que eu pudesse me sentir partícipe, que eu pudesse me sentir integrado”, explica.

As várias perdas significativas – de renda, de conteúdos, de privacidade — também foram um golpe certeiro na saúde mental dos brasileiros. Outra forma de desigualdade que existe no Brasil é a disparidade no acesso às redes e aos serviços de acolhimento psicológico. A psicóloga aponta que, apesar de existirem iniciativas de profissionais e grupos de apoio para suprir essa necessidade, o suporte psicoemocional oferecido nesse período foi precário.

Como consequência, o número de pessoas convivendo com ansiedade, depressão e síndrome do pânico – os transtornos mais comuns nesse período, segundo Ticiana – aumenta. Doenças psicossomáticas como insônia, dor de cabeça, dor de barriga, febre e bruxismo também foram impulsionadas durante a pandemia. A psicóloga afirma que esse adoecimento, por mais paradoxal que possa ser, é sinal de saúde. “Isso são sintomas de uma sociedade adoecida, toda a nossa subjetividade, toda a nossa saúde mental, não vêm por uma abstração do universo. Ela vem das nossas relações, das nossas experiências e da nossa construção como sociedade”, considera.

Vulnerabilidade estudantil

Em meio a esse contexto, os adolescentes são um dos grupos mais vulneráveis ao sofrimento psíquico. Os dados levantados pelo Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (ERICA), pesquisa transversal de base escolar realizada em 2013 e 2014, já apontavam para essa vulnerabilidade. Segundo o exame, a prevalência de transtornos mentais comuns – entre os quais estão ansiedade, depressão e distúrbios alimentares – foi de 30,0%, sendo mais elevada entre as meninas, que concentraram 38,4% dos casos. Os adolescentes mais velhos, com idades entre 15 e 17 anos, são os mais acometidos, com 33,6% dos diagnósticos.

Entre os impactos que a pandemia do coronavírus trouxe, a paralisação das aulas presenciais foi um dos que atingiram mais diretamente os jovens. Nesse contexto, estudantes e professores tiveram que lidar não somente com o medo de contágio e o isolamento social, mas foram forçados a se adaptar a uma mudança de formato que modificou completamente a dinâmica de ensino e aprendizado.

As salas de aula foram substituídas por plataformas de videoconferência; os debates em grupo, por depoimentos em fóruns e chats nas redes sociais. Alunos e professores tiveram que se adaptar a uma carga horária mais flexibilizada, à novas plataformas e modos de transmitir e absorver conhecimento.

Os resultados de uma pesquisa produzida pelo colegiado do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Ceará (UFC), divulgados em junho de 2020, fornecem um panorama geral da situação dos estudantes. A análise, que consultou mais de 90% dos discentes do curso, mostrou que os alunos, além de lidar com dificuldades técnicas e de acesso a internet e programas necessários às aulas, enfrentavam considerável desconforto psicológico gerado por sentimentos como ansiedade, medo e insegurança. A retomada às aulas somente acentuou esse quadro.

Ticiana afirma que, por não proporcionar suporte de forma equitativa para os alunos – no sentido de atender todas as especificidades, públicos e rotinas – e por não considerar outros aspectos da formação e do desenvolvimento, a transição para o online se deu de maneira deficiente. No que diz respeito aos professores, ela afirma que a mudança foi extremamente violenta, tendo em mente a ausência de preparação prévia para lidar com novos métodos, rotinas e tecnologias de ensino.

Perspectivas e vivências

Na tentativa de compreender a situação dos alunos nesse contexto de pandemia, a Liga entrevistou três estudantes de diferentes cursos e universidades. Começando por João Felipe, 22, estudante do curso de Matemática - Licenciatura na UFC. Para João, o maior desafio que a pandemia do coronavírus trouxe foi o isolamento social. Ele mora com a mãe e o irmão e, durante o confinamento, não sentia que sua casa era um lugar seguro, devido a falta de privacidade.

Apesar do desconforto, João cumpriu o decreto de quarentena à risca, tanto pelo medo de contrair a Covid-19 e ser um disseminador do vírus, quanto por temer que sua mãe, que tem 57 anos e possui diabetes, fosse acometida pela doença. Foram mais de cinco meses sem sair de casa, em um confinamento que, segundo João, foi terrível. As principais queixas do estudante são a falta de privacidade em casa, a falta de concentração para realizar as atividades e a sensação de improdutividade.

Além disso, João também se queixa do sentimento de solidão causado pelo isolamento social, já que não podia mais ter contato presencial com amigos da faculdade. Devido ao excesso de notícias na rede, muitas vezes sobre fatos negativos e preocupantes, o sentimento de ansiedade aflorou. “Isso me abalou bastante emocionalmente, tanto que várias vezes eu tentei sair das redes sociais, mas por outro lado eu não queria perder o contato com meus amigo. Então eu acabo tendo que ficar nesse ambiente ruim para poder interagir com as pessoas e não me isolar completamente.”

O estudante afirma que, antes mesmo da pandemia, a ansiedade e o desconforto psicológico já estavam presentes, embora ele nunca tenha buscado ajuda profissional ou recebido qualquer tipo de diagnóstico. Com o isolamento social para agravar esse quadro, mais do que nunca João sentia falta das atividades presenciais e da rotina na UFC. “Foi a melhor coisa que eu fiz em cinco meses e alguns dias. É muito engraçado o fato de eu apenas ter pisado na minha calçada de casa ter sido motivo de muita alegria para mim, uma sensação de liberdade muito grande.”

Sobre o ensino à distância, João afirma que tinha estrutura em casa para migrar para o online, mas que esse novo formato impactou intensamente seu rendimento acadêmico. Em casa, devido à falta de privacidade, as interferências dos familiares e o barulho na rua, ter concentração nas atividades era algo impossível. “Eu sinto muita falta do ensino presencial, porque eu costumava ir para a UFC para estudar lá, eu costumava estudar apenas na UFC, não em casa. Está sendo muito difícil eu conseguir acompanhar, tenho demorado bastante para conseguir me concentrar, conseguir resolver as listas e fazer as provas.”

Quando perguntado sobre a perspectiva de retomada das atividades presenciais, João se diz ansioso para retornar, mas somente se forem tomados todos os cuidados para prevenir uma nova onda de contágio do coronavírus. Para o estudante, o diferencial oferecido pelas aulas presenciais são a maior capacidade de concentração e o contato direto com outros alunos e professores.

Já a estudante Ana Beatriz Lima, 21, cursa Gestão Financeira na Faculdade UniAteneu e tem que conciliar o ensino à distância com o nascimento do primeiro filho, Noah, de apenas um mês. Por estar grávida durante a maior parte da quarentena, Ana Beatriz foi afastada das atividades presenciais da empresa que trabalhava, saindo apenas para consultas de pré-natal e para ocasionais visitas a parentes.

A convivência em casa não foi alterada durante a pandemia: a estudante vive com o namorado, o cunhado e a sogra, que trabalham e passam a maioria dos dias da semana fora. Ela afirma que a parte mais difícil da quarentena foi o início, quando muitos planos, como o chá de fraldas do bebê, tiveram que ser cancelados.

Ana Beatriz conta que adoeceu e teve que ser internada logo no início da pandemia. Apesar da aflição, o teste para covid-19 deu negativo e o restante da graavidez foi saudável. “O rendimento não é o mesmo, eu não concordo de você ter que pagar o valor da faculdade todo sem nenhum desconto. O ensino ficou de péssima qualidade, o rendimento das atividades, provas etc.”.

Sobre a perspectiva de retornar às aulas presenciais, Ana Beatriz confessa que sente falta da rotina da universidade, mas que não conseguiria conciliar atividades presenciais e o cuidado com o filho recém-nascido. Além disso, por morar muito longe da faculdade – ela vive em Horizonte e estuda em Messejana – a única saída viável seria trancar o curso.

A situação é um pouco diferente para Rafael Carlos, 21, estudante de Design Gráfico na Unifanor. Na sua casa moram ele, o irmão e os avós maternos, que fazem parte do grupo de risco do coronavírus pela idade avançada e por terem diabetes (avô) e pressão alta (avó). “Nesse período, todos estão com os nervos à flor da pele, tudo é motivo de uma discussão, ninguém se aguenta mais. Todos se isolam em seu canto pra evitar contato com os outros e isso parece funcionar.”

Por outro lado, a ausência de contato com amigos e outros familiares abalou as emoções do estudante e, segundo ele, causou um estresse muito grande. “Isso me abalou muito porque uma hora a gente quer sair de casa e não tem essa possibilidade, ficar muito tempo trancado com as mesmas pessoas causa um estresse muito grande.”

Rafael afirma que a transição para o ensino à distância impactou negativamente seu rendimento acadêmico. Como cursa Design, o uso de ferramentas tecnológicas não é uma novidade para o estudante, mas a impossibilidade de realizar atividades presenciais prejudicou o aproveitamento em algumas disciplinas que necessitam de trabalho manual e material físico de suporte.

O sofrimento foi agravado pela intensificação da convivência com a família, que já era complicada antes da pandemia. “Esse tempo trancado me fez ficar um pouco mais agressivo, os nervos das pessoas aqui de casa ficaram à flor da pele. Por causa do EAD, eu fiquei muito desnorteado na faculdade e na minha vida pessoal. Eu só tentava achar uma maneira de sair do lugar onde eu estou, por meio da música, por meio de falar com alguém próximo a mim”, comenta a situação.

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